26 junho 2006

Sob café e cobertores

Diante de uma pedra macia vazia de sentido, vazia de dureza, estou para pensar nuns versos esquecidos entre as fibras do muro que impede a chegada de uma paisagem, uma paisagem qualquer. Desconheço a arquitetura natural da paisagem da escrita só agora, para conhecê-la depois. Só a indiferença permite a apresentação. Apresento-me aqui, vejam os decotes do meu texto, as fendas desse tecido que me veste, sem que eu verdadeiramente o eleja. Entra um pouco de luz, refrato-me. Permito o mínimo, até o indesejável, uma invasão amena, tudo o que não for doloroso. Encolho os olhos, encurto as unhas, lubrifico o frio, arrepio as letras, numa caligrafia cuidadosa. É tudo uma umidade vazia e cômoda que deixa ao alcance dos lábios toda a comida, toda água. O mesmo líquido que se engole doce, saboroso, carrega uma história odiosa: a embriaguez mole da diferença. Sismos no gênero que se descreve escrevendo. E retorno. Anéis de veludo, linha e lã. Tudo amassado sob o peso do corpo em desequilíbrio, em tortos alfabetos. Frouxos pontos, finas pontes interditadas. Uma tenebrosa chegada, o brilho da pedra. Alguns versos lembrados, alguma coisa que se vê somente na letra poluída menos de gente que de mundo. Um desenho breve, mais obstinação irresponsável.

20 junho 2006

take the long way.. home?

E era o momento da volta, então. Até onde as lembranças valeriam? Onde repousaria, calma e oscilante, a linha limite entre o reconhecimento e a surpresa? O que encontraria de novo nas memórias velhas, que tomariam forma e consistência diante de suas mãos e olhos? O cheiro de hortelã no banheiro, o pêlo dos gatos em cima do sofá, os pôsteres na parede. Pão de sal com nutella, a sopa na xícara, a mtv sem vjs. As havaianas esquecidas propositalmente debaixo da cama, onde estariam agora? As manchas de parafina sobre a mesa, o cheiro de incenso no quarto, o que sobrara dos rituais de solidão? A cortina rosa, a cama e a janela deveriam ser as últimas sobreviventes.

De volta ao gaguejar, ao caça-palavras mental, a língua se enrolando em busca daquele som tão ... distante. De volta ao medo da volta, choque de inércias, terror das aterrissagens irreversíveis. Pois bem, prazer em conhecer, já que não somos mais os mesmos. Evidência incômoda, de obviedade meramente superficial. Prazer em conhecer, e, estrangeiros e estranhos, seremos apresentados com o velho nome, nossa única constante.

Mas o melhor é não se demorar por aí... Traga-me logo um dicionário e o chocolate quente. Não... quase me esquecia, traga logo o suco de maracujá, porque faz tanto calor... A gente vai pra varanda e você me ensina o nome das flores. ora, minha memória é fraca e eu nem as reconheço mais. Só não esqueci a tulipa e o girassol, enfim, você sabe porque. Traga também o guia da cidade, com todas as novidades desde que parti. Ah, quer dizer que só reformaram a igreja e a biblioteca? A escola fechou porque não há mais crianças? Você conta com despercebida tristeza que a cidade é cada vez mais silenciosa... Os risos vêm da tv... e do computador. Às vezes, o riso vem também diante do espelho, mas nunca por muito tempo... as rugas se formam no canto dos olhos e da boca, os dentes se mostram altivos e amarelados, a fuga da juventude incomoda um pouco, a graça se perde.

São dez horas da noite, o sol ainda lá fora, a paisagem clara, a grama tão aparada. Vontade pueril de dar cambalhotas, mas... agora sou adulta, e, por isso, contenho-me. Acompanho-lhe no cigarro e enquanto perde seu olhar na xícara do café forte que acaba de passar, eu vasculho as fendas na velha casca da velha árvore. Penso em força e resistência, a idéia da morte me vem suave e delicada. Você volta a me falar do seu avô que foi à guerra. Provavelmente não escuto, estou tão ocupada em trazer-me inteiramente de volta. Escurece. Ainda não sei onde estou, mas acomodo-me nesse não-lugar. Acalmo-me, passo a prestar atenção em suas histórias e esqueço as minhas. Entro em sintonia com a nova inércia, uma vez de volta, não mais me seria preciso voltar.

depois do 5º ou 7º coqueiro, à esquerda de quem vai

era só pra falar talvez, virar as costas e dar a entender pelo andar leve que voltaria depois. um, dois, três, ele contaria baixo. os olhos fechados, às vezes até caberia um cantarolar embromado, aquelas músicas velhas de antena1 na hora do almoço. típica trilha sonora de salas de espera. sala de espera: pernas cruzadas, conversas banais, relógio e ponteiros aprisionando momentos que podiam ser verdes e alegres, como o céu lá de fora, que se vê pela persiana semi cerrada. algo me habita então.. esfregar os olhos, bocejar, é o colírio ou o barulho do aparelho de dentista? quem sabe não seja o brilho do sorriso da mulher que sai da sala e diz: uma menina, meu bem. será uma menina.. nossa ana!

mas então, você daria alguns passos e olharia pra trás. Avistaria, com orgulhosa calma, o banco vazio. banco vazio: grades metálicas, madeiras brancas. gotas multiformes de chuva: “não, não senta, você vai se molhar”. choque térmico, folhas secas assentadas no banco de cimento, um livro esquecido, uma história encontrada, nomes rabiscados. a menina de tênis, jeans e camiseta preta resolve sentar e pensar na vida. faz-se invisível, pessoas passam, nada vêem.

você esperava encontrá-lo assim que virasse pra trás: ele deveria estar lá, olhando à sua esquerda, o pescoço ligeiramente inclinado, a exata pose para a fotografia exata. preto-e-branco. se aquele retrato fosse tirado, você o teria capturado pra si, numa imagem que seria a eterna keepsake, para ser guardada em lugar íntimo e secreto, pois era tesouro inseparável. já que nunca carregava com você nenhum aparelho fotográfico, teria acabado de perder a chance de tê-lo para sempre, mas inconsciente dessa perda, você seguiria tranqüila. [mas é verdade que nenhuma fotografia conseguiria captar o belo assombro dos olhos dele. seu garoto olhava o nada com curiosidade tão ávida, assim, meio tombando para a esquerda. sempre. e perdia o olhar com tamanha concentração que você tinha medo de se saber vista por ele. um medo que ora se transformava em desejo agudo, afiado e certeiro: os olhos de seu menino seriam então buracos negros, o caminho e a força que levariam a .. a algum lugar a que sempre desejou muito chegar.]

mas ele não estava lá. nenhuma keepsake, real ou imaginária, perfeita ou incompleta, nenhuma lembrança seria concedida. o talvez que você insinuara antes de sair não fora compreendido. calma e orgulhosa, deparava-se, então, com o banco vazio.

hesitante por não mais que meio segundo, você voltou atrás. e, sentada, começou a contar: um, dois, três. restou-lhe fechar os olhos, mas quando os abrira, já não sabia mais o que significavam os passos leves que levaram seu garoto para longe dali. teria sido um talvez? ele voltaria depois? por um momento não sabia quem partira, quem esperava.. e por quem? antes de começar a sussurrar suas músicas antigas, você se assustou. o silêncio selou seus lábios assim que o-algo-de-errado se fez evidente. você percebeu que quase caíra na tentação do devaneio, uma vez mais


aliviada , você se levanta e segue altiva em sua recusa ao delírio. o banco sempre estivera vazio, dizia a sentença que a cada dia se fazia mais leve sobre seus ombros cansados.