11 abril 2006

Pela extensão do som

Dura o sabor de manga podre e água quente na língua. Aborrecimento e pânico frente à falta de traquejo com a noite dos dias. Mais adjetivos abjetos. A dança é muito perigosa, Sue. Principalmente quando ainda guarda vestígios da sua inexorável condição de rito. Há uma inocência bizarra em tudo isso, porque se sabe que a dor é violenta, o que contraria qualquer alegria que o movimento dos pés profiram. O melhor é não proferir nada. No entanto, percebo, triste, que o ritual também se constitui, e talvez ainda mais solenemente, no silêncio de quem silencia. E o sacrifício se perpetua, eternizado nos olhos semi-fechados.

E a manga continua podre podre.

07 abril 2006

Pedaços do ovo e do texto: apontamentos e alumbramentos acerca da arte, a partir de Clarice e Deleuze.

Trabalho com o que não sei, como “outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam.”[i] Este texto quer apenas ir no rastro de um outro (“O ovo e a galinha”) para rearranjar seus mecanismos de correspondências e sua (falta de) ordem, indo diretamente ao que ele diz. O dito, escrito, expele para o leitor – para mim -, assim como o ovo expele para aquele narrador do texto que consegue vê-lo, vestígios de um novo mundo – em vários mundos – desdobrado a partir da contingência de um encontro sensível.
“Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.”[ii]

Não me aventuro nas profundezas do ovo, permaneço em sua superfície, renuncio, por ora, à gema e à clara, mesmo não sabendo.

Com o cuidado de não quebrar o ovo, percebo, quando leio, que a conexão que é tecida entre ovo e narrador, ovo e galinha, texto e leitor é tangida por um mesmo fio, mesmo ruído: o ruído do não entendimento. O narrador, mais lúcido, entende a galinha (em toda sua sábia ignorância) e poderia entender também, sem esforços, o não entender do leitor. Afinal, para o leitor, o ovo é também nudez semântica, quando o ovo é o próprio texto. Um texto que rui, fulgoriza-se e esvazia-se. Esvazia-o.

“No princípio, uma intensa alegria...”[iii], uma alegria profana[iv]: “(...) uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.”[v]
“Depois, uma espécie de sentimento de obrigação, necessidade de um trabalho do pensamento: procurar o sentido do signo (...)”.[vi]Essa busca, no entanto, traduz-se num “esforço sempre sujeito a fracasso”[vii].

O ovo propõe apenas aprendizado, possível por meio da relação entre matéria e sujeito. Mas somente o homem sensível é capaz de perceber os signos que emanam de objetos, “libera as almas implicadas nas coisas”[viii].

“De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.”[ix] Instante brotante, mas fugidio; de captação impossível: só é possível sentir suas centelhas. Daí jorram as elucubrações (re)veladoras partidas do signo sensível: o ovo. A visão do objeto redesenha um mundo descoberto, aparentemente novo, mas que se perde. Início de aprendizado, interpretação. “Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados (...).”[x] Mas só considera verdadeiramente a matéria aquele que é levado a fazê-lo, por meio de uma violência que ela imprime. Há, em primeiro lugar, um impulso que precede, a agressividade, no caso do ovo, de uma visão desenvolvedora.

“Em primeiro lugar, é preciso sentir o efeito violento de um signo.”[xi]: “- Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo.”[xii]
“- O que eu não sei do ovo é o que realmente importa.”[xiii] Só se pode ser afetado pelo ovo aquele que não o entende. “Em arte ou em literatura, quando a inteligência intervém, é sempre depois, nunca antes.”[xiv] Sabê-lo de antemão seria a falência do signo.

“Só a sensibilidade apreende o signo como tal.”[xv]

“O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se. – O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe.”[xvi] O ovo, que expõe a casca, expõe sua consistência, sua matéria, até seu conteúdo – que não está exposto. A exposição é violenta, um olhar lúcido que cega, como no amor. Para encontrar o ovo, é preciso que sua forma seja mais do que apreendida, deve ser surpreendida.

Surpreende-se, em fulgor imediato, uma imagem da eternidade.

“O ovo nos põe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.”[xvii] O que é esse ovo afinal? (Pergunta sem resposta.) Um ovo visto, invisível, o contrário de si mesmo. A que momento da estrutura do tempo somos remetidos nesse encontro? A que ponto se liga à imaginação, à memória do que não foi vivido? Desde quando seu sentido, sua essência, estão entranhados em sua casca? E estranhamos... Imagens do Absoluto, suspeita-se a pureza do Nada, os mistérios da Linguagem, pistas da essência da Arte e da Literatura, vestígios de Desejo. Ovo é “(...) a matéria sensibilizada pelo arrepio dos instantes”[xviii], num tempo reinventado, alargado: instante multiplicado.

“‘Etc., etc., etc.’ é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. (...) A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro da galinha é como sangue.”[xix] A galinha não choca, o ovo choca, a galinha disfarça...

“De repente olho o ovo na cozinha e só vejo nele a comida.”[xx]
A impressão permanece inexplicada. “E eis que não entendo o ovo. Só entendo ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem já viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.”[xxi]

Da imaginação involuntária, nascida da imagem sensível do ovo, resta pouco. As idéias de eternidade são fugazes, deixam a impressão de um tempo que se redescobre muitas vezes, porque se perde várias vezes. Como pulsões de desejo, de arte; a pulsão do nada e do absoluto. Um estado de graça profana, alegre, embora angustiante. Vibrante. Pulsões de vida que se extravia de tudo que é dado como dado. O ovo perde sua condição de utilidade, de palavra transitiva – ovo de galinha – para ser visto como tempo que se abre num mundo novo – ovo nu, intransitivo.

Em seguida, ficamos apenas com os surdos batimentos do coração, a lembrar que algo aconteceu.

“(...) ficou-me até hoje essa mão trêmula.”[xxii]

Fica o aprendizado e o silêncio, fica principalmente o silêncio exausto.

“Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. ‘Falai, falai’, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.”[xxiii]

[1] LISPECTOR. p. 59.
[1] LISPECTOR. p. 50.
[iii] DELEUZE. P. 12.
[iv] SÁ, Olga de. p. 151.
[v] LISPECTOR. p. 59.
[vi] DELEUZE. p. 12.
[vii] DELUEZE. p. 11.
[viii] DELEUZE. p. 89.
[ix] LISPECTOR. p. 49.
[x] DELEUZE, p. 4.
[xi] DELEUZE, p. 23.
[xii] LISPECTOR. p. 50.
[xiii] LISPECTOR. p. 50.
[xiv] DELEUZE, p. 23.
[xv] DELEUZE, p. 98.
[xvi] LISPECTOR. p. 50.
[xvii] LISPECTOR. p. 52.
[xviii] SÁ, Olga de. p. 157.
[xix] LISPECTOR. p. 53.
[xx] LISPECTOR. p. 54.
[xxi] LISPECTOR. p. 55.
[xxii] LISPECTOR. p. 59.
[xxiii] LISPECTOR. p. 59.





Referências bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Trad. Antônio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987.

LISPECTOR, Clarice.O ovo e a galinha. In Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro, Rocco, 1998. p. 49-59.

SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis, Vozes Ltda, 1979.